Como primeira postagem do ano, resolvi trazer o manifesto publicado em 1997 por alguém conhecido como Christian As. Kirtchev. O texto retrata seu pensamento e de uma geração que viveu a ascensão tecnológica e cultural daquela época.
Assim como outros manifestos, a exemplo do Manifesto Hacker, há uma boa dose de pessoalidade e sentimentos no texto. Entretanto não existem informações sobre o autor que nos dê uma compreensão maior de suas palavras. O pouco sabido é sobre sua origem búlgara e seus textos publicados de ficção e não-ficção. Então a questão é: quem é Kirtchev e por que ele escreveu esse manifesto? Enquanto essas perguntas ficam sem respostas, nos cabe entender suas palavras.
Dividido em cinco partes, o texto aborda questões políticas, sociais e tecnológicas. Diferente do que se possa imaginar num primeiro momento, o manifesto elaborado por Kirtchev não é um tratado sobre a literatura cyberpunk, mas sobre a realidade, identificando as pessoas que se sentem representadas pelo movimento como sendo pessoas marginalizadas ou que se sentem deslocada dentro do “sistema”.
O manifesto original pode ser encontrado no site http://project.cyberpunk.ru/idb/cyberpunk_manifesto.html, que por si só é quase uma peça digital de museu pelo seu formato noventista de website. Sugiro, inclusive, uma boa (e pouca intuitiva como de costume dos anos 90) navegação por todo o site aos saudosistas, explorando seu data base.
Realizei uma tradução do manifesto, respeitando ao máximo as palavras do autor, realizando o mínimo de modificações para que o texto tenha sentido e deixando a maioria dos erros intactos por motivos que discutirei ao final. Segue a tradução:
Um Manifesto Cyberpunk
De Christian As. Kirtchev
Nós somos as MENTES ELETRÔNICAS, um grupo de pensadores livres rebeldes. Cyberpunks.
Nós vivemos no ciberespaço, nós estamos em toda parte, nós não conhecemos limites.
Este é o nosso manifesto. O manifesto dos cyberpunks.
I. Cyberpunk
1 / Nós somos aqueles, os diferentes. Ratos tecnológicos, nadando no oceano de informações.
2 / Nós somos os retraídos, pequenas crianças na escola que sentam na última cadeira, no canto da sala de aula.
3 / Somos o adolescente que todo mundo considera estranho.
4 / Somos o aluno hackeando sistemas de computador, explorando a profundidade de seu alcance.
5 / Somos o adulto no parque, sentado num banco, laptop sobre os joelhos, programando a última realidade virtual.
6 / A nós pertence a garagem, cheia de eletrônicos. O soldador no canto da mesa e o rádio desmontado ali perto – eles também nos pertencem. É nosso o porão com computadores, impressoras que zumbem e modems bipando.
7 / Somos aqueles que enxergam a realidade de uma maneira diferente. Nosso ponto de vista mostra mais do que as pessoas comuns podem ver. Eles veem apenas o que está fora, mas nós vemos o que está dentro. Isso é o que somos – realistas com os óculos dos sonhadores.
8 / Nós somos aquelas pessoas estranhas, quase desconhecidas na vizinhança. Pessoas, entregues a seus próprios pensamentos, sentadas dia após dia diante do computador, vasculhando a rede em busca de alguma coisa. Não costumamos sair de casa frequentemente, apenas de tempos em tempos para ir a uma loja de produtos eletrônicos, ou ao bar de sempre para encontrar alguns dos poucos amigos que temos, ou para encontrar um cliente, ou o farmacêutico clandestino… ou apenas para uma caminhada.
9 / Não temos muitos amigos, apenas alguns com quem vamos as festas. Todos os outros que conhecemos, conhecemos na rede. Nossos verdadeiros amigos estão lá, do outro lado da linha. Nós os conhecemos de nosso canal favorito no IRC, do News Groups, dos sistemas pelos quais passamos.
10 / Somos aqueles que não damos a mínima para o que as pessoas pensam de nós, não nos importamos como nos parecemos ou o que as pessoas falam sobre nós na nossa ausência.
11 / A maioria de nós gosta de viver escondido, sendo desconhecida de todos, exceto daqueles poucos com quem o contato é inevitável.
12 / Outros amam o reconhecimento, eles amam a fama. São todos conhecidos no mundo underground. Mas estamos todos unidos por uma coisa – somos Cyberpunks.
13 / A sociedade não nos entende, somos pessoas “esquisitas” e “loucas” aos olhos do cidadão comum que vive longe da informação e das ideias livres. A sociedade nega nossa maneira de pensar – uma sociedade que vive, pensa e respira sob apenas um modo – um clichê.
14 / Eles nos negam porque pensamos como pessoas livres, e o pensamento livre é proibido.
15 / O cyberpunk tem uma aparência exterior, não é um movimento. Os cyberpunks são pessoas, começando pelo homem desconhecido, os artistas tecnomaníacos, dos músicos que tocam música eletrônica, dos estudiosos superficiais.
16 / O Cyberpunk não é mais um gênero de literatura, nem mesmo uma subcultura comum. O Cyberpunk é uma nova cultura autônoma, fruto da nova era. Uma cultura que une nossos interesses e visões comuns. Somos uma unidade. Somos Cyberpunks.
II. Sociedade
1 / A sociedade que nos rodeia está repleta de conservadorismos que puxa tudo e todos para si, enquanto afunda lentamente na areia movediça do tempo.
2 / Por mais obstinadamente que alguns se recusem a acreditar, é óbvio que vivemos em uma sociedade doente. As assim chamadas reformas, das quais o nosso governo tanto se gaba, são nada além de um pequeno passo adiante, quando se poderia fazer um salto completo.
3 / As pessoas temem o novo e o desconhecido. Elas preferem as verdades antigas, conhecidas e checadas. Elas têm medo do que o novo poderia trazer-lhes. Elas têm medo de perder o que têm.
4 / Seu medo é tão forte que o revolucionário foi proclamado um inimigo e a ideia livre – sua arma. Isso é uma falha delas.
5 / As pessoas devem deixar esse medo para trás e seguir em frente. Qual o sentido de se segurar no que tem, quando se poderia ter mais amanhã. Tudo o que devem fazer é esticar as mãos e sentir o novo; dar liberdade aos pensamentos, as idéias, as palavras.
6 / Há séculos que gerações são criadas segundo o mesmo padrão. São ideais o que todo mundo segue. A individualidade foi esquecida. As pessoas pensam da mesma maneira, seguindo o clichê ensinado a elas na infância, o clichê educacional para todas as crianças. E, quando alguém ousa desafiar a autoridade, é punido e dado como mau exemplo. “Aqui está o que acontece quando você expressa sua própria opinião e nega a do seu professor”.
7 / Nossa sociedade está doente e precisa ser curada. A cura é uma mudança no sistema…
III. O Sistema
1 / O sistema. Secular, baseado em princípios que não existem mais hoje. Um sistema que não mudou muito desde o dia de seu nascimento.
2 / O Sistema está errado.
3 / O Sistema deve impor sua verdade sobre nós para que possa governar. O governo precisa que o sigamos cegamente. Por isso vivemos em um eclipse informacional. Quando as pessoas adquirem informações diferentes das do governo, elas não conseguem distinguir o certo do errado. Assim, a mentira torna-se uma verdade – uma verdade suficiente para tudo o mais. Assim os dirigentes controlam com mentiras e as pessoas comuns não têm noção do que é verdade e seguem o governo cegamente, confiando nele.
4 / Nós lutamos pela liberdade de informação. Nós lutamos pela liberdade de expressão e de imprensa. Pela liberdade de expressar livremente nossos pensamentos, sem sermos perseguidos pelo sistema.
5 / Mesmo nos países mais desenvolvidos e “democráticos”, o sistema impõe desinformação. Mesmo nos países que pretendem ser o berço da liberdade de expressão. Desinformação é uma das principais armas do sistema. Uma arma que eles usam muito bem.
6 / É a Rede que nos ajuda a divulgar informação livremente. A Rede, sem fronteiras e limites de informação.
7 / O que é nosso é seu, o que é seu é nosso.
8 / Todos podem compartilhar informações, sem restrições.
9 / Codificação da informação é a nossa arma. Assim, as palavras da revolução podem se espalhar sem interrupções, e o governo pode apenas adivinhar.
10 / A Rede é o nosso reino, na Rede somos Reis.
11 / Leis. O mundo está mudando, mas as leis permanecem as mesmas. O Sistema não está mudando, apenas alguns detalhes são corrigidos para a nova época, mas tudo no conceito permanece o mesmo.
12 / Nós precisamos de novas leis, condizentes com o tempo em que vivemos, com o mundo que nos cerca. Não leis que foram criadas com base no passado. Leis, adequando-se aos tempos em que vivemos. Leis, construídas para hoje, leis, que se ajustarão para o amanhã.
13 / As leis que apenas nos impedem. Leis que precisam urgentemente de revisão.
IV. A Visão
1 / Algumas pessoas não se importam muito com o que acontece globalmente. Eles se preocupam com o que acontece ao seu redor, em seu microuniverso.
2 / Essas pessoas só podem ver um futuro sombrio, pois só podem ver a vida que vivem agora.
3 / Outros mostram interesse com o que acontece mundialmente. Eles estão interessados em tudo, no futuro em perspectiva, no que vai acontecer globalmente.
4 / Eles têm uma visão mais otimista. Para eles, o futuro é mais limpo e mais bonito, pois podem ver dentro dele e ver um homem mais maduro, um mundo mais sábio.
5 / Nós estamos no meio. Nós nos interessamos pelo que acontece agora, mas também pelos resultados do amanhã.
6 / Olhamos na rede, e a rede está crescendo cada vez mais.
7 / Em breve tudo neste mundo será engolido pela rede: dos sistemas militares ao PC em casa.
8 / Mas a rede é uma casa da anarquia.
9 / Não pode ser controlada e nisto está o seu poder.
10 / Todo homem será dependente da rede.
11 / Toda a informação estará lá, presas nos abismos dos zeros e uns.
12 / Quem controla a rede, controla a informação.
13 / Nós vamos viver em uma mistura de passado e presente.
14 / O mau vem do homem, e o bom vem da tecnologia.
15 / A rede controlará o homem pequeno e nós controlaremos a rede.
16 / Pois se você não controla, você será controlado.
17 / Informação é PODER!
V. Quem somos nós?
1 / Onde nós estamos?
2 / Todos nós vivemos em um mundo doente, onde o ódio é uma arma e a liberdade – um sonho.
3 / O mundo cresce tão lentamente. É difícil para um Cyberpunk viver em um mundo subdesenvolvido, olhando as pessoas ao seu redor, vendo como elas se desenvolvem de maneira errada.
4 / Vamos em frente, eles nos puxam de volta. A sociedade nos suprime. Sim, suprime a liberdade de pensamento. Com seus programas de educação cruel em escolas e universidades. Eles perfuram nas crianças sua visão das coisas e toda tentativa de expressar uma opinião diferente é negada e punida.
5 / Nossos filhos crescem educados neste sistema antigo e ainda inalterado. Um sistema que não tolera liberdade de pensamento e exige obediência estrita as regras…
6 / Em que tipo de mundo, tão diferente deste, nós poderíamos viver se as pessoas estivessem dando saltos e não arrepios.
7 / É tão difícil viver nesse mundo, Cyberpunk.
8 / É como se o tempo tivesse parado.
9 / Nós vivemos no lugar certo, mas não no tempo certo.
10 / Tudo é tão comum, as pessoas são todas iguais, seus atos também. Como se a sociedade sentisse necessidade urgente de voltar no tempo.
11 / Alguns, tentando encontrar seu próprio mundo, o mundo de um Cyberpunk, e encontrando-o, constroem seu próprio mundo. Construído em seus pensamentos, ele muda a realidade, se estende sobre isso e assim eles vivem em um mundo virtual. O pensamento, construído sobre a realidade
12 / Outros simplesmente se acostumam com o mundo como ele é. Eles continuam a viver nele, embora não gostem. Eles não têm outra escolha a não ser a pura esperança de que o mundo saia de seu buraco e siga em frente.
13 / O que estamos tentando fazer é mudar a situação. Estamos tentando ajustar o mundo atual às nossas necessidades e pontos de vista. Usar ao máximo o que for apropriado e ignorar o lixo. Onde não podemos, apenas vivemos neste mundo, como Cyberpunks, não importa o quão duro, quando a sociedade luta contra nós, nós lutamos de volta.
14 / Construímos nossos mundos no ciberespaço.
15 / Entre os zeros e uns, entre os bits de informação.
16 / Construímos nossa comunidade. A comunidade de Cyberpunks.
Uni-vos!
Lutem por seus direitos!
Nós somos as MENTES ELETRÔNICAS, um grupo de pensadores livres rebeldes. Cyberpunks.
Nós vivemos no ciberespaço, nós estamos em toda parte, nós não conhecemos limites.
Este é o nosso manifesto. O manifesto dos cyberpunks.
14 de Fevereiro de 1997
Christian As. Kirtchev
A leitura desse manifesto revela bastante sobre a visão do autor e sua forma de ver o mundo. Acredito que houve uma tendência de juntar os valores punks com o inconformismo de Kirtchev sobre diversos assuntos, o que acaba por deixar o texto as vezes confuso, as vezes bem próximo dos imutáveis problemas sociais e políticos que temos. Mas há algo além que merece ser discutido. Cristian As. Kirtchev é búlgaro, o que faz de sua experiência de vida algo muito distante da nossa. Provavelmente um conhecedor dos momentos finais da Guerra Fria e um sujeito que viu uma tecnologia inovadora ganhar muita atenção sobre seu futuro potencial. Por simplesmente estarmos tão distante de sua realidade, um pouco de luz sobre Kirtchev ajudaria a compreender melhor suas palavras.
Quem ler o texto original em inglês notará uma certa quantidade de erros de pontuação e palavras não tão adequadas para dizerem o que o autor quis dizer. Os mais bem acostumados a língua inglesa facilmente notarão que as frases são ditas de maneira estranhas. Isso acontece devido a tradução, que não é de autoria de Kirchev, mas sim de “Illian Batanov Malchev, 1997”. De qualquer maneira, em uma explicação para isso, Kirtchev disse em entrevista ao site Neon Dystopia, que seu texto foi traduzido diretamente do búlgaro e, na época, sua pátria era país satélite ao bloco comunista. Ele chama esse inglês de “broken english”. Isso explica bastante coisa para o leitor que é pego sem conhecer o contexto do manifesto.
Recomendo a leitura da revisão e discussão do manifesto em inglês realizado pelo Neon Dystopia: https://www.neondystopia.com/cyberpunk-fashion-lifestyle/a-cyberpunk-manifesto-20-years-later/
Mais de vinte anos se passaram e o espírito do cyberpunk continua enfrentando os mesmos desafios apresentados no manifesto e suas palavras se tornaram uma referência dentro do universo cultural cyberpunk.